Sobre o Criar Arte e seus Tantos Nós (no meio do Sertão)

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Foto: Niele XBê

O ano era 2016, a CIA teatral Criando Arte completava sua primeira década de estrada, com um repertório que passeava por inúmeras experiências e influências teatrais, com trabalhos desde comédias de costumes dentro do teatro popular nordestino, até, e posteriormente o teatro de rua e a palhaçaria. O grupo, que sempre ousou no enfoque de uma dramaturgia autoral, buscava em encontros diários, novos rumos de propostas e pesquisas para criação, focadas em experimentos de escolas e conceitos de teatro desenvolvidos ao longo do século XX, como os tragos por Antonin Artaud, Gerzy Grotowski e pela dramaturgia ímpar de Samuel Beckett. E de um desses experimentos surgiu Tantos Nós.

Tantos nós foi um trabalho inovador para a então poética do grupo, e traz como mote principal: o viver juvenil no Sertão nordestino através da arte, construído a partir de relatos autobiográficos do elenco e equipe técnica da CIA Criando Arte. Vivido por 4 jovens e do grupo de teatro que formam, são tantos, plurais, dezenas até, ora com 15, 25, 30 anos, apresentam o ato político de se mostrarem jovens e junto disso, a necessidade de vivência da/na arte para o acreditar na vida.

O Sertão e consequentemente o Nordeste estão e continuam assim, como foco central do trabalho do grupo, que já percorria há longo tempo, pesquisas e criações sobre a arte local e regional, com enfoques distintos: trabalhos voltados a manifestações folclóricas e marcadas pelo identitário regional. Tantos Nós não foge disso completamente, e traz o sertão destes dias, que vive, que pulsa. Apresenta a dificuldade juvenil da vida em uma pequena cidade do interior, de um estado do interior, de um país do interior, local sem grandes oportunidades (principalmente na/à arte), e que por vezes a utopia reina (e tem que reinar!), caso não, nada existe. O êxodo, por vezes, é necessário, e a vida, como tem que ser, parece longe. Tantos Nós tanto afirma, quanto nega tudo isso.

O espetáculo passeia por diversas situações contadas e cortadas ora de forma sutil, ora abrupta, como uma conversa numa mesa de bar, ambiente-guia de todo o espetáculo, que traz outros, com a licença que a arte cenográfica permite: ruas, salas de ensaio, palcos. A presença de simbologias imagéticas e poéticas, brincam com essa cenografia, e correm todo o trabalho, como o palco como um palco, ou o vinho (que foi o mote central no experimento de criação), que em certo momento é um elo entre atores e público, que trocam doses e histórias e constroem partes do espetáculo, aproximando-os e tornando-os simultaneamente, expec-atores[1]. Além disso, o vinho, ou melhor, a garrafa e seu conteúdo, atuam como ampulheta, ao ser o marcador do recorte temporal da peça, que se inicia e se termina, cada qual, em um gole. O texto busca um conjunto de singularidades que distorcem a ideia de tempo e espaço, como exemplo, cenas onde a experiência teatral cai dentro dela mesma, numa brincadeira metalinguística e de produção de quebras de expectativas. E assim, no texto, a vida passa e a necessidade de viver no lugar que tantos negam, o Sertão, vem à tona, junto da necessidade de marcar os dias de juventude. E daí a arte.

Em 2 anos de circulação, o espetáculo foi se moldando e se construindo a cada apresentação dentro da estrada (como acredito que acontece com a maioria de todos os trabalhos teatrais construídos de forma coletiva a partir de uma sala de ensaio), mudanças de elenco, quebras de texto, dentre outros fatores, mas sempre a preservar o motivo inicial da obra. Esta proposta de publicação aborda assim, o trabalho de quase 4 anos de mais de 10 pessoas, que deixaram por cá um pedacinho de suas vidas. Inúmeras influências, como a música de Antonio Carlos Belchior (que pouco mais de um mês de seu velório no mesmo palco do Theatro São João em Sobral, tivemos a honra apresentar este espetáculo que traz como trilha sonora, seu repertório), a música e a poesia de Bob Dylan, a música e engaje político do chileno Victor Jara, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, e todas influências teatrais adquiridas ao longo de uma década, essenciais para este texto existir, como Augusto Boal, Peter Brook, Antonin Artaud, Gerzy Grotowski, Constatin Stanislavski, Zé Celso Martinez Correa, e tantos e tantos outros.

Tantos Nós, assim, é um fichamento à juventude, à arte e ao Sertão. É a apresentação de vidas, que são de todos nós e afirma a necessidade do hoje e do aqui para que tantos instantes sejam construídos no âmago de sua plenitude.

Mailson Furtado, um transeunte

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[1] Augusto Boal. Jogos para atores e não-atores. Ed Civilização Brasileira. 1992.

2018, fica.

2018, apesar dos pesares, da imensidão turva que nos trouxe pr’além, foi um ano que ficou. Foi, pra mim, um ano de experiências primeiras. Importantes e marcantes.

Todo fim de ano, gosto de ver o que aconteceu, sentir o quanto o foi vivido, e falar um pouco disso. Foi um ano intenso, com as mais diversas experiências… Trouxe de volta, minha escrita ao mundo blogueiro, que há anos havia deixado de lado (precisava dessa distância!), e reinventei esta vontade com o Re|Visão, este espaço que trago para falar de arte, com um tom mais crítico, principalmente para trabalhos apresentados cá pelas bandas da Zona Norte (ou mesmo interior) do Ceará (sentia e sinto falta disso!), com um olhar mais aprofundado de trabalhos artísticos tragos por e para cá, e foi meio que um ato político também, abrir espaço para quem eu acho que deve o ter, e não tem. Está sendo uma experiência magnífica, e muito feliz pra mim, pois em grande parte dos trabalhos que compõem o blog, é pela primeira vez que o artista ou coletivo, que mesmo possuindo um trabalho já de anos, recebe um retorno escrito. Fico feliz de registrar isso.

Este 18, pontua a realização de uma grande proposta que já acontecia desde 15, e que só agora pode tomar corpo, a Casa de Arte CriAr. O espaço que é a sede da CIA Criando Arte, da qual participo, atuo e dirijo, e que busca ser um espaço de vivências artísticas, diálogos e intercâmbios culturais, aqui por Varjota e Sertão da Zona Norte cearense. Este ano, a Casa toma sua plenitude. Traz ações e atividades que ecoam em todos que puderam se adentrar por lá, e através disso aprendi muito: a ser produtor, a ser mais artista! Tivemos a oportunidade de conhecer trabalhos magníficos desde o teatro à dança, da música às artes visuais de artistas de todo o Ceará (da serra, praia e sertão), além de ações de leitura que a biblioteca comunitária (a única de Varjota!), que está dentro da Casa, realiza.

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Sala de espetáculos. Casa de Arte CriAr.
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Clubinho de leitura na Biblioteca Comunitária Fca Nogueira. Casa CriAr.
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Curso de Fotomanipulação digital. Casa de Arte CriAr.
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Exposição Pluralidade. Casa de Arte CriAr.
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Aulas de Ballet. Casa de Arte CriAr.
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Espetáculos. Casa de Arte CriAr.

Pra CIA Criando Arte foi um ano de alicerçamento, a Casa CriAr nos deu um novo gás em projetos, e tudo bem diferente de tudo que já fizemos, foi um ano de aprendizagem. Foi um ano de mais estudos, de pesquisas, de experimentações, de intercâmbios (sempre esse suspiro é fundamental pra gente, para seguirmos, e assim vamos!). No entanto, fizemos circulações bem marcantes em todo o Ceará com Tantos Nós, Estripulia e Boi CriAr, e mais uma vez registramos a nossa firmação em acreditar e resistir sempre, mesmo nestes tempos sombrios que vivemos para arte.

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Espetáculo Estripulia. Casa de Arte CriAr.
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Espetáculo Tantos Nós. Theatro São João
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Espetáculo Boi CriAr. Zona Rural Varjota|CE.

2018 finda com muita alegria. Foi um ano de firmação pra minha literatura, essa que produzo há certo tempo e este ano em si, trouxe-me coisas muito importantes, e não somente pelo Prêmio Jabuti. Este foi um ano de leituras distintas, pesquisa por artes visuais e por poesia visual; por experimentos poéticos destes dias; o ano de ler mais crítica e teoria literária; o ano de conhecer outras realidades, e de entender que o mundo é um só.

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Foto: Renato Pessoa

A construção da coletânea Cinco inscrições da mortalidade (que percorreu o ano inteiro na sua construção) traz uma felicidade enorme: a de estar entre artistas e amigos únicos desses dias e de nosso lugar, e creio sim!, que esta é uma obra que pontua nossas letras cearenses e reflete uma fresta do que se produz por cá, muito feliz de ser parte disso! O Passeio pelas ruas de mim [e de outros] surge como minha mais nova proposta literária, e sem dúvidas, a minha obra mais experimental (que pode dar muito certo ou muito errado hehehe), e que reflete de tudo o que bebi de influências até hoje, foi um passeio por mim mesmo, e um livro que foi surgindo e tomando corpo a cada dia. E depois disso tudo, o mais marcante foi ver minha poesia e meu poema-livro à cidade ganhar outros rumos, que sinceramente não esperava, mas sonhava! Ganhar o Prêmio Jabuti, da forma que foi, está sendo uma experiência tão única e tão brilhante que nada pode ser meramente comparado ao que já vivi. Sentir minha poesia invadir outros rios, outros trilhos, outras terras, está sendo algo que me pulsa na carne! Sentir a alegria de amigos, de artistas, de meu povo é algo de uma imensidão que não sei se cabe em mim entender tudo isso. Muito feliz de poder viver e dar vida a estes momentos…

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…e 2018, apesar dos pesares, fica!

Felipe Castro e o afogar do sentir

Felipe Castro no espetáculo Da Cor de Laranja
Felipe Castro no espetáculo Corpoco

Conheço Felipe no rascunhar de encontros que a vida nos ofertou pelas terras firmes na ribeira do Acaraú em Sobral. Ele sempre com uma força (imagética, inclusive) enquanto humano, que traz sem nenhum peso toda a energia do pulsar poético carne adentro, a nos inundar pela sua presença, sempre marcante, sempre presente.

Felipe tornou-se amigo. E cá, acolá pude acompanhar o seu registrar artístico sempre a provocar o sentir. Neste novembro turvo de 2018, pude sentir de perto seus dois últimos trabalhos, quando Da cor de laranja e Corpoco visitaram a Casa de Arte CriAr, em Varjota, da qual sou produtor.

Da cor de laranja é um ensaio de memórias a partir das possibilidades do sentir, e este se adentra ao tato, ao gosto, ao cheiro, ao ver, ao ouvir. O trabalho cheira a café (que também dá gosto), a alfazema, a cheiro de avó. É imagético e com cor de âmbar, de sertão, de introspecção, de casa de massapê. E sonoro, com chiado do debulhar de um terço, da conversa a pé de ouvido num alpendre sem luz. É um emborcar nas possibilidades do sentir. A sonoplastia rasante e rouca, e o audiovisual que pontua o  final do espetáculo nó-cegam o que ainda havia por ser mexido no sensibilizar de qualquer um. É um trabalho doce, profundo, e Felipe o formata com sua imagem, seus passos, sua fotografia, seu construir coreográfico, que é ofertado a todos com singelo pedido de licença, mas sem deixar de dar.

Já…

Corpoco é lancinante! O espetáculo tem uma parceria com o guitarrista Rodrigo Brasil, que faz a sonoplastia do trabalho, que por si só merece ser apontada. Sua guitarra rasante, pulsante e psicodélica alicerça todo o trabalho, além de todo o trabalho performático que Rodrigo realiza, necessário ao ambiente da obra. Felipe aqui, rompe seu corpo, se adentra, se destila (nele mesmo). Causa o caos e o traz – pulsa como nunca! e apresenta o seu estado entrópico na sua mais funda camada orgânica. A catarse é visível. É um descascar do ser corporal, ora de fora pra dentro, ora de dentro pra fora, que o procura e se afasta dele, numa briga pontual, como de uma serpente no perseguir de seu próprio rabo. É um desafio do ver. Do ver por dentro (da gente). É um devorar humano, que acontece a cada dia a cada um de nós. É um afogar por dentro.

Assim sendo, gratidão a Felipe por esse afogar, por esse mergulhar tão necessário do sentir. Ora de forma doce, ora cortante, e nunca igual a nada. Igual a Felipe.

Mailson Furtado,
ator e diretor teatral

Passeio pelas ruas de mim [e de outros] por Welligton Jr

CAPA FINAL.jpgCaro Amigo Mailson,

Pois bem, ao ler um pouco de seus escritos, sinto em primeiro momento um arrebatamento, em que sou jogado diante de espelhos, onde me vejo e vejo retratos do homem de nosso tempo; espelhos de algum modo de mim, de ti, de todos nós. Espelhos entre palavras, entre versos, entre metáforas e imagens, num conversar em que se misturam poema, crônica e conto, apresentando-nos estes que são retratos de mortes em vida, ou de vidas mortas.

Você, meu caro Mailson, recria e nos apresenta a seu modo esse que é o nosso Admirável Mundo Novo, um mundo sem vozes, sem plurais, sem expressões para além da expressão nenhuma; mundo repleto de pílulas, mundo cercado de cercas, de concretos, de consumos, de descartes, de relógios, vibrando num tique-taque sem face e sem voz, um tique-taque que nos aperta a garganta, nos sufoca o sentimento e tudo o que nos pulsa em desmedidas. Um tique-taque redundantemente estéril que (nos) pare mortos, num mundo onde a Poesia deve ser contida.

E você, descontente com isto, com este mundo, apresenta-nos sua Poesia – que não se contém nem se detém – em que você nos mostra e nos oferta seu olho, e nos convida a conhecê-lo, a passear por suas ruas e de seus mundos, de onde você não se afasta. Ao contrário: expressando-nos suas dores, lamentos, angústias e questionamentos, se afirma e afirma que faz parte destes mundos.

Como não o bastante, você nos empresta seus olhos para que também possamos passear por nossas ruas e pelas ruas de nossos mundos. E nos conduz, assim como você, a nos questionar: até quando o despertador pré-programado e o livro fechado? até quando 241 páginas por ler? Até quando não veremos a lua à noite? Até quando sentiremos saudade do barulho das chuvas? Até quando viraremos latas de refrigerante? Até quando? Até quando? A resposta a estas questões não sei, não sabemos. Mas sei que este seu-nosso passeio (se assim me permite), este espelho, este grito, é uma bela contribuição para que enxerguemos em meio às nossas cegueiras brancas, nós, estes homens cegos e duplicados, de que fala Saramago, e transformemos estas águas que nos escorrem às mãos e nos desmancham as faces, em verdadeiros barros, matéria-prima para construirmos nossas casas, para vivermos uma vida vivida, uma vida poética, no sentido grego do termo Poesia.

Diante de tudo isso, faço questão de nestas próximas linhas deixar ainda mais explícito o que penso: sua obra, meu caro Mailson, destila de um olhar político, é uma micro- resistência a esse panorama em que vivemos e a esses discursos de grandes bocas que nos engolem e que nos ensinam a nos engolir a cada segundo. É uma obra, portanto, de Poesia Histórica, Política, Identitária e de Resistência! Eis que nesse 31 de outubro, Dia Nacional da Poesia, te parabenizo muito por isto, meu caro Poeta Mailson Furtado, e te agradeço por compartilhar de tua Poesia comigo e com o Mundo!

Welligton Jr é poeta, psicólogo e
mestre em literatura comparada

4 Portas na Mesa de infindas portas

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Joyce Ramos em Medea. Theatro São João. Foto: Dan Seixas

Era 2014, concluía a faculdade, e retornava a minha cidade natal, Varjota, após quase 6 anos vivendo em Sobral. Já há mais de uma década, eu convivia de perto com as artes cênicas por conta da CIA Criando Arte (que participo) e do movimento teatral da cidade de Varjota, e neste período, via que Sobral, mesmo sendo a capital econômica e por conseguinte, cultural de toda a região norte cearense, o seu movimento cênico local apresentava-se um tanto morno, com poucas montagens, e apresentações esporádicas de alguns grupos resistentes, como as CIAs do Batente, Primeiro Ato, e de outros trabalhos feitos em conjunto por artistas locais e projetos conduzidos pela ECOA ou pelo próprio Theatro São João, desde o teatro até a dança contemporânea.

Foi neste período, segundo semestre de 2014, que conheço Chico Expedito Solon, grande homem de teatro, sobralense, que retorna e traz à cidade uma proposta de uma casa de produção cultural, gerida de forma independente, a 4 Portas na Mesa. O espaço era de uma casa, localizado próximo a praça do Patrocínio, que foi adaptado e ali logo, transformar-se-ia tanto numa sala de ensaios, estudos e experimentações cênicas, como numa pequena sala de espetáculos, que logo atraiu um grande número de artistas locais e inúmeras produções em diversas vertentes artísticas, desde o teatro, fotografia, a passar pela música, poesia, dança…

Em um espaço de tempo de pouco mais de 3 anos de atuação, o 4 Portas além dos inúmeros eventos e momentos de discussão artístico-cultural, nos ofertou já com quase uma dezena de montagens, desde Brecht, Nelson Rodrigues, Guarnieri até a tragédia Grega de Eurípedes. Deu não somente a Sobral, mas toda a sua região circunvinha, a oportunidade de montagem e apresentação de clássicos da dramaturgia nacional e mundial, que com certeza não seriam oportunizados caso a Escola Livre de Teatro e demais cursos e oficinas estivessem por existir (alguns desses projetos já com apoios institucionais), além de abraçar artistas e grupos na estrada há tempos e oportunizar a formação de uma grande nova massa artística, tornou-se um espaço de comunhão e promoção de ideias e abriu muito mais que 4 portas ao nosso cenário cultural, principalmente o teatral, talvez infinitas, que hoje, para sempre são necessárias.

Mailson Furtado,
diretor e ator teatral

Julho e o ser varjotense

Há mais ou menos um ano, dois talvez, O Ser Varjotense era um dos temas que discutíamos em encontros da classe artística de Varjota, debate com intuito simples de autopesquisa, autoconhecimento, de conhecer mais onde vivíamos, onde estávamos. Pontos como: a barragem Paulo Sarasate, o rio Acaraú, e o mês de julho foram dos mais apresentadas.

Julho, em Varjota, é o mais da padroeira (Senhora Sant’Ana), que como em qualquer outra cidade pequena de interior brasileiro (pelo menos no Nordeste, que conheço bem), é a maior festa do calendário anual, a bater carnaval, São João e outras festividades similares, por ser este, um momento de cunho ímpar ao identitário local. Tal festividade, em Varjota, data dos primórdios do povoamento da atual cidade, lá por volta do fim do século XIX, ainda quando a capela local era de autoridade da distante paróquia de Guaraciaba do Norte. Hoje, a antiga capela localizada nas proximidades da fazenda Varjota, está submersa nas águas do Araras, e em períodos de seca, como nos últimos anos, seu alicerce pode ser visto (e visitado).

Estaria sendo repetitivo ao explicar a importância do catolicismo para a construção sociológica deste país, mais ainda em tratando-se de Nordeste, afinal tudo isso vemos e ‘aprendemos’ desde os primeiros dias de vida, formamo-nos, deformamo-nos assim. Daí a grande importância de julho para o povo da terra do Araras.

O novenário, que se inicia dia 16 e vai ao 26, traz o sentimento festivo. A cidade se prepara nas suas diversas áreas para atender a população, seja no lazer, na arte, no comércio, na culinária; há atração para todos os públicos. A praça central lotada de transeuntes, pipoqueiros, vendedores de algodão doce, ambulantes, brinquedos infantis, parque de diversões; restaurantes cheios; as barracas populares – que montam um curto corredor de forma artesanal na avenida principal da cidade (já parte da tradição local), servem desde petiscos até bebidas, e são animadas ao som de artistas locais e regionais, que dobram noite adentro; durante o dia – o banho no Acaraú. A cidade pulsa. Julho, além de tudo, torna-se importante por ser o mês de férias, o que possibilita uma grande leva de visitantes, afinal, Varjota, como centenas de outras cidades do Nordeste sofrem dia-a-dia com êxodo, principalmente ao Sul. E julho, torna-se motivo do retorno, seja total, seja parcial.

O que de início é alicerçado no sagrado, amplia-se em dimensão, e o profano ganha seu espaço. Isso é a cultura, e a que chamamos de popular, dessa mesma forma veio o Carnaval, as Folias de Reis, o São João. E assim, a cidade vive, pulsa. Há gente nas ruas. Há festa, seja sagrada, seja profana, que como cita Freud, em seu Totem e Tabu, festa é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, e assim necessitamos dela, e não entrarei no mérito da importância unitária de cada uma das partes, afinal as duas caminham tão juntas, que se torna desnecessário, e sem motivo, dividi-las. N’outros locais, o março, o agosto, o dezembro é um dos motivos do sentir-se identitário local, aqui, em Varjota – Terra do Araras, o julho, afinal, este, há mais de 2 séculos é um dos motivos de ser deste povo.

Concluo, este pensar, com um poeminha de minha autoria e com a sensação que ele amplifica com a chegada do 26 de julho, pra muitos: o último ou primeiro dia do ano:

“a tarde cai ao passar da procissão
no dia da padroeira
o ano se foi”
Mailson Furtado,
varjotense,
poeta, ator e diretor teatral

Porta-Voz há uma década

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Era segundo semestre de 2006, um evento feito a pau e pedra e sem um centavo furado, foi a Mostra de Cultura, Diversão e Arte, da qual fui um dos ativistas na sua criação, como assim denomino minha participação naquela noite que dura até hoje, eu, moleque de 15 anos. Já era fim de noite, todas apresentações em cronograma já realizadas e para término, um palco aberto musical improvisado. Ali conheço Erasmo, em palco (já o conhecia, mas como vizinho): gritos, canções de protesto, palavras de ordem, uma verdadeira revolução para toda aquela geração de adolescentes ali presentes. O Portavoz de nossa geração surgia, como o mesmo intitular-se-ia dias depois, depois de outros tantos momentos como aquele.

2006 a 2008 foram três anos intensos de produção de arte em Varjota, como nunca antes, trabalhos que tinham como objetivo, vendo de longe hoje, de autoconhecimento, autoprovação e experiência do que aqueles artistas e sua terra, tinham a dar uns aos outros, seja no teatro, na capoeira, na dança, na música. Dentre os pilares daquele momento estava Erasmo, que trouxe uma das experiências mais inovadoras na história da música local (pra mim, até hoje, a maior): o rock politizado e progressivo dos Operários da Ruína, que ecoam até esses dias.

Muito do que os Operários trouxeram, além claro, de sua pesquisa musical, com influência da música regional e do rock progressivo do anos ’70 e Rock B’80, veio das composições precisas, toantes (até consoantes) de Erasmo, que entoam poesia, filosofia e o máximo de sentimentalismo popular, sem clichês, ao seu estilo próprio, subjetivo, que o destaca como grande trovador dessa vida única, presente e real.

Entre 2010 a esses dias, Erasmo passeou em outras experiências, como a literatura, com a publicação de vários folhetos de cordel e de seu primeiro livro, de crônicas, Sobre Gatunos & Viralatas, em 2016, pela editora Protexto, além de publicações de poemas em antologias Brasil afora; e a pesquisa histórica, em seu papel enquanto historiador, com trabalhos sempre voltados ao patrimônio cultural simbólico e imaterial. Nesse período tornou-se pai, estudante de música, e infelizmente órfão, e seu violão cochilou, apesar de sempre ativo em suas criações, de forma instrospecta e interior, mas em público, pela música mesmo, poucas apresentações, e idealizador e produtor de festivais locais, não em seu papel principal, o de artista, mas de ativista, como sempre foi e ainda o é.

Neste junho de 2018, após um hiato total de quase 2 anos sem aparições musicais públicas, Erasmo Portavoz traz seu novo projeto à tona, em voz e violão, o espetáculo Íntimo, lançado ontem (30|jun|18) na Casa de Arte CriAr, em Varjota. O show traz um repertório autoral vasto composto de vários momentos da carreira do compositor, com músicas já marcadas e entoadas pelo público (Insetos Amarelos, Algumas Horas, Singelo, Nascido pra Voar, Menina Heroína), como também por canções inéditas (SOS sós, Jaz na Areia). Um trabalho que revela totalmente o artista dos últimos dias: intimista, interiorano, trovadoresco. Com um violão cru e toante, vibrante e tocado como balanceio de quebra de mar, ou riacho, já que o poeta é de Sertão, Erasmo adentra dentro de si e se apresenta sem máscaras, como o é. Íntimo traz o público ao palco, que também se despe e sem medo se apresenta, e é parte do espetáculo, em conversas puxadas como bate-papo pelo próprio artista, sobre sua poesia, sobre sua música, sobre esses dias de todos nós, sem formalismos, como de fato a vida é.

Íntimo é político; é vibrante; é poético; como Erasmo, que há uma década porta uma voz poderosa aos nossos ouvidos, necessária. Feliz, fico, por conhecê-la, e bem mais que isso, feliz por conhecer de perto o portavoz musical de minha geração, que vive!

Mailson Furtado,
diretor e ator da
CIA teatral Criando Arte

Caras e Bocas e seus muitos fios

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Crédito: @carasebocasciateatral

O ano era 2006, começava a praticar e entender teatro, de uma forma ainda bem superficial com a CIA Criando Arte, e buscava de forma bem amadora produzir o grupo em cidades da redondeza de Varjota|CE (onde sempre morei), dentre elas, Reriutaba, cidade vizinha, com estreita ligação histórico-política com a terra do Araras, onde lá estava a CIA Caras e Bocas, sob direção artística de Leomário Muniz, que apesar de pouco tempo de existência de grupo, já possuía um repertório de trabalhos e circulações locais e regionais na bagagem, o que me fez entender e apresentou-me este mercado regional do teatro aqui existente, com demais grupos da Serra da Ibiapaba e Vale do Médio-Acaraú.

A CIA Caras e Bocas, neste contexto, foi de fundamental importância para firmação do fazer teatral em grupo em toda essa região, visto que a prática teatral na grande maioria das cidades interioranas era da montagem de trabalhos esporádicos e de apresentação única, vinda da dissipação daquele elenco, que na maioria das vezes, nunca mais voltava a produzir qualquer trabalho. Nesta primeira década de século XXI, vieram grupos|companhias, como: G.R.A.C. e C.I.A. em Guaraciaba do Norte, Criando Arte em Varjota, Mamulengos da Serra em Ibiapina, Caras e Bocas em Reriutaba, todas em atividades há mais de uma década, além de outros grupos já extintos, ou em atividades que começaram inspirados nesses, e sem dúvidas, a CIA Caras Bocas, nesse início (2005-2008), foi sem dúvidas, o grupo que mais se destacou e firmou este “novo” fazer teatral, ainda não firmado por estas bandas, e talvez o primeiro a manter repertório e circulações constantes.

Em 13 anos de atividades, a CIA Caras e Bocas sofreu um grande rodízio de elenco, embora sempre com a direção de Leomário, o que preserva desde seu início a estética do grupo: um teatro que preza o cuidado pela imagem, pela figura, sempre centrada nos(as) atores|atrizes; um teatro popular que não cai na mesmice de clichês imensamente repetitivos; a busca da convergência do teatro com outras vertentes artísticas, como a dança e artes visuais; um trabalho autoral em todos campos, desde dramaturgia até a direção; entre outras questões que vem desde Rerius: a origem de nossa taba, o primeiro trabalho do grupo (de 2005), até Por um fio, estreado ontem (3|jun|2018).

Nesta década, a poética do grupo passeou por inúmeros temas, que exigiram pesquisas únicas, que deram a CIA trabalhos que vão desde poéticas voltadas a historiografia local, a metalinguagem teatral, até o tema ‘transcendental’ de Por um fio, que é Vida e Morte.

Por um fio, texto e direção de Leomário Muniz, um espetáculo em 5 atos, apresenta de forma poético-dramatúrgica o duo Vida-Morte. Cada ato acontece isoladamente e é costurado com os demais, com números de dança, ora contemporâneos, ora populares, o que aproxima diversos públicos. O elenco formado por 7 atores|atrizes vem com um figurino ‘neutro’ que trazem simbologia ao terreno e ao transcendental, que adicionados a simples acessórios travestem diversos personagens.

O primeiro ato traz um diálogo entre juventude e velhice, montado de forma bem caricatural, e que aborda com um tom dramático em seus dois primeiros terços, e finda com uma grande quebra de expectativa, num tom que desliza ao cômico, pela dúvida|confusão sobre a conversação (vida ou morte?). O segundo, possui um tom trágico, narrado de forma araútica por um ancião oriental em segundo plano, que possui em primeira planificação, o instante último de vida, ou o primeiro instante da morte, da filha que é assistida pelo pai, falecer. O terceiro, vem conversar sobre suicídio, em um tom trágico-dramático, com uma abordagem, aos meus olhos, transcendental, cena vivida por dois amigos juvenis. O quarto ato,  em contraposição ao primeiro ato, é invertido, seu terço final é dramático, e seus dois iniciais, farsesco, cômico, com a figura estereotipada da Morte (que após intitula-se, Mistério), no entanto, de maneira muito feliz, repete-se a quebra de expectativa, que mistura o tom fantasioso ao de realidade. O quinto e último ato finda o espetáculo, é um ato de imagens sobre a morte, cortejos, caixões, velórios, é um ato de fantasia, talvez transcendentalidade, traz a figura de uma morte Viva, que é amplificada e ecoada ao fim do espetáculo, que fica.

Por um fio traz reflexões ímpares sobre a Vida e consequentemente sobre o Lhe dar com a morte e com certeza é um espetáculo que firma ainda mais a CIA Caras e Bocas no cenário teatral desta Zona Norte Cearense, e um trabalho que muito tem a galgar e crescer ao caminhar por estes fios que mapeiam palco a palco do fazer teatral.

Mailson Furtado Viana,
Diretor artístico e ator
da CIA Criando Arte

Saltimbancos e a nova poética do teatro varjotense

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Crédito: Renancio Monte

Os primeiros relatos sobre teatro nas terras varjotenses, decorrem do fim do século XIX, com festas populares e folclóricas em alpendres e festejos de padroeira, e tem como primeira aparição e embasamento, assim como todo o teatro nordestino, o teatro popular lusoafroindígena, que permaneceu aqui, exclusivo, até o fim da década de 1950.

Com a mudança e a criação do panorama urbano da atual cidade, a partir da década de 1960, surge um novo teatro, este estudantil, que se manteve único até a primeira metade dos anos 1990, e ainda hoje é vivo, embora com a presença de um movimento teatral independente, dos quais, a CIA Criando Arte (da qual dirijo), e o grupo Saltimbancos, fazem parte, dentre outros.

O grupo Saltimbancos com pouco mais de 3 anos, já com 5 trabalhos, formado por crianças e adolescentes, constrói a cada dia sua carreira enquanto grupo artístico e se consolida de vez, na história do teatro local. Neste último sábado (12|mai|18), o grupo apresenta pela primeira vez, seu primeiro trabalho autoral, as Crias do Mundo, que mudam radicalmente sua estética e poética até então realizada, não menos importante, mas essa certamente mais inovadora.

As Crias do Mundo, trabalho de pesquisa conjunto do grupo, com direção e texto de Roniê Borges, apresenta um paralelo entre a infância na seca e de refugiados do oriente médio de crianças órfãs, literalmente criadas e moldadas pelo mundo, na busca do sustento e do amanhã. O espetáculo é construído em recortes não-lineares, que ao fim se entrelaçam e se unem na construção de um final único. A dramaturgia é envolvente e mistura diálogos a declamações araúticas em poemas, ora na literatura popular, ora não, e montam um grande jogo entre os atores (ainda em iniciação, mas com grande potencial para crescimento como tais).

O trabalho é vivo, em cor, possui um tom de âmbar e muitas influências teatrais das últimas décadas, como o teatro pobre de Grotowski, o teatro cruel de Antonin Artaud e a poética política presente em Brecht. É um trabalho rico, conceitual.

Nosso teatro, feito por muitos grupos, mas talvez pelo mesmo público, após passar por uma longa fase na produção de comédia de costumes (ainda feita por alguns grupos), logo depois vir com experimentos de teatro surreal pela CIA Criando Arte entre 2009/10/11, e de teatro popular, realizado por todos os grupos, firma uma nova poética e apresenta ao público novas propostas estéticas cênicas, onde já estavam presentes espetáculos como Tantos Nós e Transitórios da CIA Criando Arte e agora, AS CRIAS DO MUNDO. Nosso teatro transborda, a cada dia mais vivo. Ganhamos todos: público, artistas, a arte.

Mailson Furtado,
Diretor e ator teatral
da CIA Criando Arte

Bruno e seus assombros

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“O poeta é uma ilha cercada por poesia por todos os lados” fala o poeta e crítico Antônio Carlos Secchin, frase extremamente feliz, da qual o Bruno [o Paulino], é prova disso. Bruno, em seus Pequenos Assombros, seu 4º livro, traz toda a poesia que o cerca, através de seus contos curtos, uma quase marca de sua escrita – a concisão, característica valiosa para esses nossos dias de viver rápido. Neste livro, suas influências vão desde Edgar Allan Poe, Stephen King até contadores de lorotas em pés-de-calçada, dos quais, nós enquanto sertanejos, ainda hoje conseguimos acompanhar. O Sertão, como em suas outras obras, é o plano de fundo, e por que não dizer, o plano central. Bruno registra em ficção um sertão do século XIX, ainda em formação, e o torna real. Aproxima esse mundo distante que a globalização nos leva, ao que sempre esteve do nosso lado, nossas crendices populares. Pequenos Assombros marca ou já confirma Bruno Paulino, além de grande pesquisador do Sertão Central cearense que já é, como um contador de histórias, tarefa extremamente difícil e de responsabilidade: ser menestrel de um Sertão, que a todo dia começa.

Mailson Furtado Viana