Sobre o Criar Arte e seus Tantos Nós (no meio do Sertão)

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Foto: Niele XBê

O ano era 2016, a CIA teatral Criando Arte completava sua primeira década de estrada, com um repertório que passeava por inúmeras experiências e influências teatrais, com trabalhos desde comédias de costumes dentro do teatro popular nordestino, até, e posteriormente o teatro de rua e a palhaçaria. O grupo, que sempre ousou no enfoque de uma dramaturgia autoral, buscava em encontros diários, novos rumos de propostas e pesquisas para criação, focadas em experimentos de escolas e conceitos de teatro desenvolvidos ao longo do século XX, como os tragos por Antonin Artaud, Gerzy Grotowski e pela dramaturgia ímpar de Samuel Beckett. E de um desses experimentos surgiu Tantos Nós.

Tantos nós foi um trabalho inovador para a então poética do grupo, e traz como mote principal: o viver juvenil no Sertão nordestino através da arte, construído a partir de relatos autobiográficos do elenco e equipe técnica da CIA Criando Arte. Vivido por 4 jovens e do grupo de teatro que formam, são tantos, plurais, dezenas até, ora com 15, 25, 30 anos, apresentam o ato político de se mostrarem jovens e junto disso, a necessidade de vivência da/na arte para o acreditar na vida.

O Sertão e consequentemente o Nordeste estão e continuam assim, como foco central do trabalho do grupo, que já percorria há longo tempo, pesquisas e criações sobre a arte local e regional, com enfoques distintos: trabalhos voltados a manifestações folclóricas e marcadas pelo identitário regional. Tantos Nós não foge disso completamente, e traz o sertão destes dias, que vive, que pulsa. Apresenta a dificuldade juvenil da vida em uma pequena cidade do interior, de um estado do interior, de um país do interior, local sem grandes oportunidades (principalmente na/à arte), e que por vezes a utopia reina (e tem que reinar!), caso não, nada existe. O êxodo, por vezes, é necessário, e a vida, como tem que ser, parece longe. Tantos Nós tanto afirma, quanto nega tudo isso.

O espetáculo passeia por diversas situações contadas e cortadas ora de forma sutil, ora abrupta, como uma conversa numa mesa de bar, ambiente-guia de todo o espetáculo, que traz outros, com a licença que a arte cenográfica permite: ruas, salas de ensaio, palcos. A presença de simbologias imagéticas e poéticas, brincam com essa cenografia, e correm todo o trabalho, como o palco como um palco, ou o vinho (que foi o mote central no experimento de criação), que em certo momento é um elo entre atores e público, que trocam doses e histórias e constroem partes do espetáculo, aproximando-os e tornando-os simultaneamente, expec-atores[1]. Além disso, o vinho, ou melhor, a garrafa e seu conteúdo, atuam como ampulheta, ao ser o marcador do recorte temporal da peça, que se inicia e se termina, cada qual, em um gole. O texto busca um conjunto de singularidades que distorcem a ideia de tempo e espaço, como exemplo, cenas onde a experiência teatral cai dentro dela mesma, numa brincadeira metalinguística e de produção de quebras de expectativas. E assim, no texto, a vida passa e a necessidade de viver no lugar que tantos negam, o Sertão, vem à tona, junto da necessidade de marcar os dias de juventude. E daí a arte.

Em 2 anos de circulação, o espetáculo foi se moldando e se construindo a cada apresentação dentro da estrada (como acredito que acontece com a maioria de todos os trabalhos teatrais construídos de forma coletiva a partir de uma sala de ensaio), mudanças de elenco, quebras de texto, dentre outros fatores, mas sempre a preservar o motivo inicial da obra. Esta proposta de publicação aborda assim, o trabalho de quase 4 anos de mais de 10 pessoas, que deixaram por cá um pedacinho de suas vidas. Inúmeras influências, como a música de Antonio Carlos Belchior (que pouco mais de um mês de seu velório no mesmo palco do Theatro São João em Sobral, tivemos a honra apresentar este espetáculo que traz como trilha sonora, seu repertório), a música e a poesia de Bob Dylan, a música e engaje político do chileno Victor Jara, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, e todas influências teatrais adquiridas ao longo de uma década, essenciais para este texto existir, como Augusto Boal, Peter Brook, Antonin Artaud, Gerzy Grotowski, Constatin Stanislavski, Zé Celso Martinez Correa, e tantos e tantos outros.

Tantos Nós, assim, é um fichamento à juventude, à arte e ao Sertão. É a apresentação de vidas, que são de todos nós e afirma a necessidade do hoje e do aqui para que tantos instantes sejam construídos no âmago de sua plenitude.

Mailson Furtado, um transeunte

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[1] Augusto Boal. Jogos para atores e não-atores. Ed Civilização Brasileira. 1992.

2018, fica.

2018, apesar dos pesares, da imensidão turva que nos trouxe pr’além, foi um ano que ficou. Foi, pra mim, um ano de experiências primeiras. Importantes e marcantes.

Todo fim de ano, gosto de ver o que aconteceu, sentir o quanto o foi vivido, e falar um pouco disso. Foi um ano intenso, com as mais diversas experiências… Trouxe de volta, minha escrita ao mundo blogueiro, que há anos havia deixado de lado (precisava dessa distância!), e reinventei esta vontade com o Re|Visão, este espaço que trago para falar de arte, com um tom mais crítico, principalmente para trabalhos apresentados cá pelas bandas da Zona Norte (ou mesmo interior) do Ceará (sentia e sinto falta disso!), com um olhar mais aprofundado de trabalhos artísticos tragos por e para cá, e foi meio que um ato político também, abrir espaço para quem eu acho que deve o ter, e não tem. Está sendo uma experiência magnífica, e muito feliz pra mim, pois em grande parte dos trabalhos que compõem o blog, é pela primeira vez que o artista ou coletivo, que mesmo possuindo um trabalho já de anos, recebe um retorno escrito. Fico feliz de registrar isso.

Este 18, pontua a realização de uma grande proposta que já acontecia desde 15, e que só agora pode tomar corpo, a Casa de Arte CriAr. O espaço que é a sede da CIA Criando Arte, da qual participo, atuo e dirijo, e que busca ser um espaço de vivências artísticas, diálogos e intercâmbios culturais, aqui por Varjota e Sertão da Zona Norte cearense. Este ano, a Casa toma sua plenitude. Traz ações e atividades que ecoam em todos que puderam se adentrar por lá, e através disso aprendi muito: a ser produtor, a ser mais artista! Tivemos a oportunidade de conhecer trabalhos magníficos desde o teatro à dança, da música às artes visuais de artistas de todo o Ceará (da serra, praia e sertão), além de ações de leitura que a biblioteca comunitária (a única de Varjota!), que está dentro da Casa, realiza.

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Sala de espetáculos. Casa de Arte CriAr.
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Clubinho de leitura na Biblioteca Comunitária Fca Nogueira. Casa CriAr.
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Curso de Fotomanipulação digital. Casa de Arte CriAr.
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Exposição Pluralidade. Casa de Arte CriAr.
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Aulas de Ballet. Casa de Arte CriAr.
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Espetáculos. Casa de Arte CriAr.

Pra CIA Criando Arte foi um ano de alicerçamento, a Casa CriAr nos deu um novo gás em projetos, e tudo bem diferente de tudo que já fizemos, foi um ano de aprendizagem. Foi um ano de mais estudos, de pesquisas, de experimentações, de intercâmbios (sempre esse suspiro é fundamental pra gente, para seguirmos, e assim vamos!). No entanto, fizemos circulações bem marcantes em todo o Ceará com Tantos Nós, Estripulia e Boi CriAr, e mais uma vez registramos a nossa firmação em acreditar e resistir sempre, mesmo nestes tempos sombrios que vivemos para arte.

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Espetáculo Estripulia. Casa de Arte CriAr.
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Espetáculo Tantos Nós. Theatro São João
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Espetáculo Boi CriAr. Zona Rural Varjota|CE.

2018 finda com muita alegria. Foi um ano de firmação pra minha literatura, essa que produzo há certo tempo e este ano em si, trouxe-me coisas muito importantes, e não somente pelo Prêmio Jabuti. Este foi um ano de leituras distintas, pesquisa por artes visuais e por poesia visual; por experimentos poéticos destes dias; o ano de ler mais crítica e teoria literária; o ano de conhecer outras realidades, e de entender que o mundo é um só.

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Foto: Renato Pessoa

A construção da coletânea Cinco inscrições da mortalidade (que percorreu o ano inteiro na sua construção) traz uma felicidade enorme: a de estar entre artistas e amigos únicos desses dias e de nosso lugar, e creio sim!, que esta é uma obra que pontua nossas letras cearenses e reflete uma fresta do que se produz por cá, muito feliz de ser parte disso! O Passeio pelas ruas de mim [e de outros] surge como minha mais nova proposta literária, e sem dúvidas, a minha obra mais experimental (que pode dar muito certo ou muito errado hehehe), e que reflete de tudo o que bebi de influências até hoje, foi um passeio por mim mesmo, e um livro que foi surgindo e tomando corpo a cada dia. E depois disso tudo, o mais marcante foi ver minha poesia e meu poema-livro à cidade ganhar outros rumos, que sinceramente não esperava, mas sonhava! Ganhar o Prêmio Jabuti, da forma que foi, está sendo uma experiência tão única e tão brilhante que nada pode ser meramente comparado ao que já vivi. Sentir minha poesia invadir outros rios, outros trilhos, outras terras, está sendo algo que me pulsa na carne! Sentir a alegria de amigos, de artistas, de meu povo é algo de uma imensidão que não sei se cabe em mim entender tudo isso. Muito feliz de poder viver e dar vida a estes momentos…

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…e 2018, apesar dos pesares, fica!

4 Portas na Mesa de infindas portas

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Joyce Ramos em Medea. Theatro São João. Foto: Dan Seixas

Era 2014, concluía a faculdade, e retornava a minha cidade natal, Varjota, após quase 6 anos vivendo em Sobral. Já há mais de uma década, eu convivia de perto com as artes cênicas por conta da CIA Criando Arte (que participo) e do movimento teatral da cidade de Varjota, e neste período, via que Sobral, mesmo sendo a capital econômica e por conseguinte, cultural de toda a região norte cearense, o seu movimento cênico local apresentava-se um tanto morno, com poucas montagens, e apresentações esporádicas de alguns grupos resistentes, como as CIAs do Batente, Primeiro Ato, e de outros trabalhos feitos em conjunto por artistas locais e projetos conduzidos pela ECOA ou pelo próprio Theatro São João, desde o teatro até a dança contemporânea.

Foi neste período, segundo semestre de 2014, que conheço Chico Expedito Solon, grande homem de teatro, sobralense, que retorna e traz à cidade uma proposta de uma casa de produção cultural, gerida de forma independente, a 4 Portas na Mesa. O espaço era de uma casa, localizado próximo a praça do Patrocínio, que foi adaptado e ali logo, transformar-se-ia tanto numa sala de ensaios, estudos e experimentações cênicas, como numa pequena sala de espetáculos, que logo atraiu um grande número de artistas locais e inúmeras produções em diversas vertentes artísticas, desde o teatro, fotografia, a passar pela música, poesia, dança…

Em um espaço de tempo de pouco mais de 3 anos de atuação, o 4 Portas além dos inúmeros eventos e momentos de discussão artístico-cultural, nos ofertou já com quase uma dezena de montagens, desde Brecht, Nelson Rodrigues, Guarnieri até a tragédia Grega de Eurípedes. Deu não somente a Sobral, mas toda a sua região circunvinha, a oportunidade de montagem e apresentação de clássicos da dramaturgia nacional e mundial, que com certeza não seriam oportunizados caso a Escola Livre de Teatro e demais cursos e oficinas estivessem por existir (alguns desses projetos já com apoios institucionais), além de abraçar artistas e grupos na estrada há tempos e oportunizar a formação de uma grande nova massa artística, tornou-se um espaço de comunhão e promoção de ideias e abriu muito mais que 4 portas ao nosso cenário cultural, principalmente o teatral, talvez infinitas, que hoje, para sempre são necessárias.

Mailson Furtado,
diretor e ator teatral

Caras e Bocas e seus muitos fios

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Crédito: @carasebocasciateatral

O ano era 2006, começava a praticar e entender teatro, de uma forma ainda bem superficial com a CIA Criando Arte, e buscava de forma bem amadora produzir o grupo em cidades da redondeza de Varjota|CE (onde sempre morei), dentre elas, Reriutaba, cidade vizinha, com estreita ligação histórico-política com a terra do Araras, onde lá estava a CIA Caras e Bocas, sob direção artística de Leomário Muniz, que apesar de pouco tempo de existência de grupo, já possuía um repertório de trabalhos e circulações locais e regionais na bagagem, o que me fez entender e apresentou-me este mercado regional do teatro aqui existente, com demais grupos da Serra da Ibiapaba e Vale do Médio-Acaraú.

A CIA Caras e Bocas, neste contexto, foi de fundamental importância para firmação do fazer teatral em grupo em toda essa região, visto que a prática teatral na grande maioria das cidades interioranas era da montagem de trabalhos esporádicos e de apresentação única, vinda da dissipação daquele elenco, que na maioria das vezes, nunca mais voltava a produzir qualquer trabalho. Nesta primeira década de século XXI, vieram grupos|companhias, como: G.R.A.C. e C.I.A. em Guaraciaba do Norte, Criando Arte em Varjota, Mamulengos da Serra em Ibiapina, Caras e Bocas em Reriutaba, todas em atividades há mais de uma década, além de outros grupos já extintos, ou em atividades que começaram inspirados nesses, e sem dúvidas, a CIA Caras Bocas, nesse início (2005-2008), foi sem dúvidas, o grupo que mais se destacou e firmou este “novo” fazer teatral, ainda não firmado por estas bandas, e talvez o primeiro a manter repertório e circulações constantes.

Em 13 anos de atividades, a CIA Caras e Bocas sofreu um grande rodízio de elenco, embora sempre com a direção de Leomário, o que preserva desde seu início a estética do grupo: um teatro que preza o cuidado pela imagem, pela figura, sempre centrada nos(as) atores|atrizes; um teatro popular que não cai na mesmice de clichês imensamente repetitivos; a busca da convergência do teatro com outras vertentes artísticas, como a dança e artes visuais; um trabalho autoral em todos campos, desde dramaturgia até a direção; entre outras questões que vem desde Rerius: a origem de nossa taba, o primeiro trabalho do grupo (de 2005), até Por um fio, estreado ontem (3|jun|2018).

Nesta década, a poética do grupo passeou por inúmeros temas, que exigiram pesquisas únicas, que deram a CIA trabalhos que vão desde poéticas voltadas a historiografia local, a metalinguagem teatral, até o tema ‘transcendental’ de Por um fio, que é Vida e Morte.

Por um fio, texto e direção de Leomário Muniz, um espetáculo em 5 atos, apresenta de forma poético-dramatúrgica o duo Vida-Morte. Cada ato acontece isoladamente e é costurado com os demais, com números de dança, ora contemporâneos, ora populares, o que aproxima diversos públicos. O elenco formado por 7 atores|atrizes vem com um figurino ‘neutro’ que trazem simbologia ao terreno e ao transcendental, que adicionados a simples acessórios travestem diversos personagens.

O primeiro ato traz um diálogo entre juventude e velhice, montado de forma bem caricatural, e que aborda com um tom dramático em seus dois primeiros terços, e finda com uma grande quebra de expectativa, num tom que desliza ao cômico, pela dúvida|confusão sobre a conversação (vida ou morte?). O segundo, possui um tom trágico, narrado de forma araútica por um ancião oriental em segundo plano, que possui em primeira planificação, o instante último de vida, ou o primeiro instante da morte, da filha que é assistida pelo pai, falecer. O terceiro, vem conversar sobre suicídio, em um tom trágico-dramático, com uma abordagem, aos meus olhos, transcendental, cena vivida por dois amigos juvenis. O quarto ato,  em contraposição ao primeiro ato, é invertido, seu terço final é dramático, e seus dois iniciais, farsesco, cômico, com a figura estereotipada da Morte (que após intitula-se, Mistério), no entanto, de maneira muito feliz, repete-se a quebra de expectativa, que mistura o tom fantasioso ao de realidade. O quinto e último ato finda o espetáculo, é um ato de imagens sobre a morte, cortejos, caixões, velórios, é um ato de fantasia, talvez transcendentalidade, traz a figura de uma morte Viva, que é amplificada e ecoada ao fim do espetáculo, que fica.

Por um fio traz reflexões ímpares sobre a Vida e consequentemente sobre o Lhe dar com a morte e com certeza é um espetáculo que firma ainda mais a CIA Caras e Bocas no cenário teatral desta Zona Norte Cearense, e um trabalho que muito tem a galgar e crescer ao caminhar por estes fios que mapeiam palco a palco do fazer teatral.

Mailson Furtado Viana,
Diretor artístico e ator
da CIA Criando Arte